13 de dezembro de 2010

Os Animais

Dico

Para desgosto da minha família, no período final da segunda metade dos anos 80, entre 1987 e 1989, à semelhança de qualquer outro headbanger típico, eu trajava diariamente com calças justas de ganga elástica, t-shrits das minhas bandas favoritas e blusões de ganga (nunca cheguei a adquirir um de cabedal) ornamentados com dorsais, patches e crachás de grupos. Na altura, encontrava-me ainda a deixar crescer o cabelo. Seguindo a tendência da época, também não dispensava os ténis-bota (preferencialmente da Reebok, passo a publicidade), as pulseiras e cintos de bicos, anéis com caveiras e uma pesada corrente adquirida na loja de ferragens mais próxima, que pendia das calças em forma de “u”.

Este meu visual garantia-me sempre lugar disponível nos transportes públicos. Não só me sentava à primeira como o banco ao lado também ficava vago (não fosse eu estripar quem lá “ousasse” sentar-se). Se fosse uma mulher grávida ou um idoso certamente não teria tanta sorte. Onde quer que eu fosse, os transeuntes olhavam para mim (e para a generalidade dos headbangers) com um misto de terror, choque e repugnância. Sempre que recordo estes episódios vêem-me à memória os versos “quando ando pela rua toda a gente olha para mim, parece que me querem comer, e esta merda nunca mais tem fim” do clássico «Animais», dos Censurados.

O visual que adoptei assegurava-me, aliás (como a inúmeros outros fãs de Metal), o epíteto de “drogado” e “ladrão”. Certo dia fui mesmo acusado por um homem que viajava de pé ao meu lado num autocarro cheio de lhe ter roubado a carteira. Nada me enraivece mais do que a injustiça e a calúnia, pois além de sempre ter sido um pacato cidadão, orgulho-me da minha honestidade intransigente.

Na medida em que a minha forma de dizer “vão-se todos foder, seus anormais infelizes” aos preconceituosos e retrógrados com quem tenho a infelicidade de me cruzar sempre foi - e ainda é – chocá-los o mais possível, obrigando-os a enfrentar o que mais receiam ou detestam, acrescentei à minha indumentária uma cruz invertida, passando também a fazer-me acompanhar na rua por um leitor de cassetes que, alto e bom som, debitava estratégica e provocatoriamente músicas de bandas extremas. Recordo-me que os Blessed Death eram um dos meus grupos eleitos para o efeito, dada a indescritível gritaria vociferada pelo frontman.

De forma natural, no início dos anos 90 abandonei os ornamentos, passando a adoptar um visual minimalista: cabelo comprido, t-shirt ou sweat shirt pretas, calças justas de ganga elástica preta e os inevitáveis ténis-bota. Ainda assim, mantive o meu “lugar reservado” nos transportes públicos. Ao cruzarem-se comigo na rua, as pessoas preservavam a expressão de terror e repúdio que tão exemplarmente denunciava a sua ilimitada estupidez. Agora, devido à indumentária e aos meus longos cabelos, eram os epítetos de “paneleiro” e “drogado” que me atribuíam (sempre nas minhas costas, obviamente). Ora, nunca tendo eu duvidado da minha virilidade ou sequer fumado um charro (sim, é verdade), decidi ignorar esses “mimos”. Aos 21 anos fui obrigado a cortar o cabelo para arranjar emprego. Mais tarde, deixei-o crescer novamente e ainda mais.

Hoje, do alto meus 40 anos e da indumentária formal que envergo diariamente, continuo a ser descriminado pelo visual de outrora. Há tempos, em conversa sobre televisão com uma nova pessoa do meu círculo de conhecimentos, falei-lhe do meu gosto pelos programas “Miami Ink” e “LA Ink”, especializados em tatuagens, que me esforço por nunca perder, embora nunca haja tatuado o corpo. Horrorizada, a mulher, de apenas 32 anos (sim, não falo de uma velha retrógrada), expressou uma repugnância tal para com esta forma de arte e para com todos os que a ostentam no corpo que eu não podia acreditar. Há muito que não via uma demonstração de intolerância e discriminação social tão veemente.

Na sequência do tema, informei-a que já havia usado cabelo comprido e trajado a roupa típica do headbanger médio dos anos 80. Percebi o choque na expressão da mulher, que nem se esforçou por disfarçar. Perguntou-me então: “Como é possível? Ninguém diria. Vestes-te tão bem. Pareces tão pacato”.

No dia seguinte mostrei-lhe propositadamente várias fotos minhas dessas épocas (sendo uma delas a que ilustra este texto). Ansiava confrontá-la com a sua própria estupidez e preconceito. O choque foi ainda maior.

Incrédula, de olhos esbugalhados, era quase como se a mulher tivesse à frente imagens de cadáveres ou algo parecido. “Que horror” e “não é possível que já tenhas sido assim”. Falava como se de um abjecto serial killer se tratasse. E estas foram apenas algumas das frases que lhe saíram pela boca fora. Enquanto outras pessoas comentavam cordialmente o meu antigo visual, a outra mergulhava num mar de preconceito. Acabou por ser humilhada por mim e pelos restantes presentes, remetendo-se por fim ao silêncio. Que outra solução tinha?

Dico

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