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Quando me propus redigir este artigo sabia que seria tudo menos fácil, não só pela enorme responsabilidade que constitui escrever sobre tão mítica figura da rádio e da música em Portugal como foi o António Sérgio mas também pela emotividade que semelhante tarefa representa para mim. Nunca se poderá avaliar com exactidão e justiça a verdadeira influência do radialista na formação musical de sucessivas gerações de melómanos ao longo das quatro décadas que dominou o microfone, mas uma coisa é certa: o seu impacto foi monumental!
Por muitos conhecido essencialmente por ter realizado o famoso programa “Som da Frente” (dedicado à New Wave e à Pop) entre 1982 e 1993, António Sérgio constitui no entanto uma referência incontornável para os fãs nacionais de Metal, que durante quase dez anos, entre 1983 e 1993, ouviram religiosamente na Rádio Comercial, aos sábados à tarde entre as 16h e as 18h, as novidades do Som Eterno.
As Sete Vidas do Heavy Metal
Dedicado ao Hard Rock e a todas as variantes do Heavy Metal, o “Lança-chamas” estreou-se a 23 de Outubro de 1983, apenas com uma hora de emissão. Contudo, o impressionante carisma de Sérgio, o seu magnífico “vozeirão”, a escassez de programas do género, a inusitada coragem de fazer um programa deste cariz a nível nacional e a falta de informação (na época não existia Internet nem revistas da especialidade) asseguraram êxito imediato ao projecto que, a pedido dos fãs, rapidamente se estendeu a duas horas de emissão.
Fui um dos muitos milhares de bafejados pela sorte de “frequentar” a “universidade de Heavy Metal” que era o “Lança-Chamas”, tendo absorvido semanalmente cada minuto da “aula” do “professor António Sérgio” com avidez e paixão. Sim, o “Lança-Chamas” era uma verdadeira escola no sentido mais amplo do termo, tal a quantidade e qualidade musical e informativa que nele se descobria.
Aliás, o trabalho de António Sérgio influenciaria não só a formação de um apreciável número de bandas, fanzines, clubes de fãs e outros projectos relacionados, mas também a criação de inúmeros programas de autor em pleno boom das rádios pirata e locais (escola de várias referências actuais do éter nacional), impulsionando directamente e de forma significativa o desenvolvimento do Underground metálico português dos anos 80. [Em 1986, profundamente influenciado pelo António Sérgio e o seu “Lança-chamas”, este vosso escriba chegou a prestar provas, sem êxito, numa rádio pirata sedeada na cave do Centro Comercial do Lumiar, em Lisboa, com um projecto de programa de autor intitulado “O Som do Metal”.]
Ouvir o “Lança-Chamas” aos sábados à tarde entre as 16h e as 18h era um ritual, um acto religioso. A partir das 15h55 preparavam-se as cassetes, preferencialmente de crómio, para assegurar a melhor qualidade sonora possível (havia que reservar uma suplente para que não se perdesse um só momento do programa).
Às 15h59 já a cassete aguardava no deck da aparelhagem o início do “Lança-Chamas”. Os botões “play”, “rec” e “pause” ficavam pressionados, aguardando os primeiros acordes do fabuloso «Eruption» (muitos anos mais tarde substituído por «Heading Out the Higway», dos Judas Priest), que em 1978 lançara os Van Halen e especialmente o guitarrista Eddie para a estratosfera da fama. Não havia melhor tema para genérico do programa. Ouvir aquele 1’42” de puro virtuosismo arrepiava-nos da cabeça ao pés (ainda hoje o faz), mergulhando-nos bem fundo no maravilhoso universo do Heavy Metal. Findo o genérico soltava-se o botão “pause” e entrávamos noutra dimensão, sob o mote “As Sete Vidas do Heavy Metal”.
Gravávamos todo o programa e ouvíamo-lo vezes sem conta. Obviamente reproduzíamo-lo para os amigos, que repetiam o ritual ad aeternum, impulsionando o fenómeno do tape-tradding em Portugal a uma velocidade vertiginosa. A voz do Sérgio também era gravada. Fazê-lo não era perder espaço na cassete, era ganhar em paixão. Cada sílaba, cada frase era voluptuosamente assimilada. Ouvir com atenção aquela voz quase hipnótica, potentíssima, “quente”, “cheia” e envolvente transmitia-nos uma sensação de poder, de excitação, fazendo-nos sonhar em possuir semelhante dom.
Era no “Lança-Chamas” que ouvíamos em primeira mão os mais recentes álbuns das maiores bandas internacionais, que descobríamos novos e excitantes subgéneros, que ouvíamos os grupos emergentes, que ficávamos a par das principais novidades do Som Eterno ou que tínhamos conhecimento da visita a Portugal da nossa banda favorita, numa altura em que havia um espectáculo de grupos estrangeiros a cada dois anos, anualmente ou, com muita sorte, de seis em seis meses.
Nessa época dourada que foram os anos 80 o António Sérgio deu-nos a conhecer centenas ou milhares de bandas cujos discos eram ansiosamente procurados nas discotecas nacionais de referência, com destaque em Lisboa para a Motor (mais tarde Bimotor), situada nos Restauradores e considerada a catedral discográfica do Som Eterno na altura. Aí se adquiriam bilhetes para concertos, LP’s, EP’s e singles, cassetes, demo-tapes, fanzines e newsletters, estando os projectos nacionais sempre devidamente representados, numa era em que os discos do género Made in Portugal se resumiam aos dedos de uma mão.
Aliás, o “Lança-Chamas” não esquecia o Underground. Com o ingresso de Paulo “Scorp” Fernandes (vocalista dos Cruise, que chegaram a gravar um single e a abrir o concerto de Gary Moore a 13 de Maio de 1987 no Dramático de Cascais) e Gustavo Vidal (presidente do clube de fãs Heavy Metal Zombies Paranoid e responsável da fanzine “Renascimento do Metal”) na equipa do programa (António Freitas também havia de por lá passar, como assistente do Mestre no final dos anos 80), os headbangers passaram a conhecer as mais recentes bandas e fanzines portuguesas, os clubes de fãs, os concertos ou as matinés de domingo no mítico Rock Rendez Vous (em que havia concertos nalgumas semanas e passagem de música com transmissão de clips da MTV noutras).
Foi através do “Lança-Chamas” que inúmeros fãs conheceram os Alkateya, Tarântula, Ramp, Vasco da Gama, Cruise, Xeque-mate, Tao, Satan’s Saints, Thormentor, The Coven, Ramp, Braindead, Massacre, V12, Sepulcro, Jarojoupe, Black Cross, Enforce e tantos outros grupos nacionais que de uma forma ou de outra estiveram na génese do Metal português. Foi igualmente no programa que os meus dois primeiros grupos – os Paranóia e os Dinosaur – se estrearam no éter, daí o “Lança-Chamas” ser triplamente importante para mim, bem como para centenas de outros músicos nacionais.
Contudo, apesar do enorme êxito alcançado, nos últimos anos de emissão a direcção da Rádio Comercial tenta por diversas vezes encerrar o programa. Indignados, os milhares de fãs respondiam massivamente com cartas de protesto, mantendo o “Lança-chamas” no ar. Até que, no início dos anos 90, a privatização da emissora acaba mesmo por ditar o fim do programa, que passa a ser realizado na Rádio Energia por um breve período até encerrar definitivamente, deixando uma lacuna impossível de preencher no meio radiofónico metálico em Portugal.
Infelizmente, nunca poderemos agradecer o suficiente ao António Sérgio por ter enriquecido as nossas vidas de uma forma tão intensa, apaixonada, marcante e definitiva. Mas continuaremos, para todo o sempre, a ouvir ecoar a sua voz nas nossas mentes e corações. Esta é a minha sentida maneira de o fazer. Muito obrigado e até sempre, Amigo!
PS:
A 14 de Janeiro realiza-se no Cinema São Jorge, em Lisboa, um concerto de homenagem a António Sérgio. Notícia alargada em Diario Digital
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Biografia de um ícone
António Sérgio © Rita Carmo |
António Sérgio Correia Ferrão nasce na cidade angolana de Benguela a 14 de janeiro de 1950. Os pais, locutores do Rádio Clube do Bié, incutem-lhe desde muito cedo a cultura radiofónica. Em 1968, já em Lisboa, António Sérgio estreia-se na Rádio Renascença. Coapresenta com a mãe os programas “Encontro para Dois” e o mítico “Quando o Telefone Toca”.
Rebelde e inconformista, vê nos programas de autor a mais eficaz forma de expressão e divulgação da cultura musical que na época escapava aos portugueses. Em 1976 cria o programa “Rotação”, que apresenta até 1979, sendo pioneiro na divulgação em Portugal de inúmeros grupos e artistas a solo internacionais de primeira linha. Torna-se conhecido também pela sua voz forte, potente, bem colocada e aprazível.
Sempre na vanguarda do que de melhor e mais recente se fazia no Rock, na New Wave, na Pop, no Punk ou no Heavy Metal mundiais, a partir de 1980 António Sérgio realiza e apresenta na RDP - Rádio Comercial os programas “Rolls Rock”, entre 1980 e 1982; “Som da Frente”, de 1982 a 1993; “Louras, Ruivas e Morenas”, em 1984; e “Lança-Chamas”, na década compreendida entre 1983 e 1993; programa que a emissora tenta encerrar por diversas vezes. Consegue-o em 1993, levando Sérgio o “Lança-chamas” para a Rádio Energia, onde termina definitivamente pouco depois.
Entre 1993 e 1997 António Sérgio dá voz ao programa de Blues “Grande Delta” na XFM. O fim da estação dita o regresso à Comercial, onde apresenta “As Horas”. Em simultâneo, na Best Rock FM faz” A Hora do Lobo”. A 14 de setembro de 2007 a nova gerência da Rádio Comercial dispensa o radialista, sob efusivo protesto dos ouvintes. Alegadamente, o seu programa de autor não se enquadrava na nova grelha, estruturada em playlists. O locutor ingressa então na Rádio Radar para realizar e apresentar “Viriato 25” e a rubrica “SOS Radar” até à sua morte, a 1 de novembro de 2009, de ataque cardíaco.
Em vida, António Sérgio viu a sua obra ser reconhecida publicamente variadas vezes e de formas diferentes mas não com tanta regularidade como seria justo. Em 1999 recebe um Globo de Ouro na categoria de rádio e em 2008, na comemoração de quatro décadas de trabalho dedicadas em exclusivo à música, é merecidamente considerado pela revista “Blitz” uma das 50 personalidades mais importantes da Música Portuguesa.
Durante o seu trajeto profissional ímpar António Sérgio trabalha ainda nas editoras Nébula, Nova (onde coproduz o álbum Música Moderna, dos Corpo Diplomático), Rossil (em que funda e dirige a subsidiária Rotação, lançando os Xutos & Pontapés com o single Sémen) e Música Alternativa. A edição era, com efeito, uma das suas paixões.
Enquanto jornalista escreve nos jornais “Blitz” (onde dirige o suplemento mensal “Manifesto”) e “Independente”. Em 2006 passa a fazer voz-off na SIC. É justamente considerado a nível nacional e internacional um dos mais influentes divulgadores de música Rock, Pop e Alternativa. Apesar de extremamente lisonjeiro, o epíteto de “John Peel português”, que muitos lhe atribuem, revela-se bastante redutor e limitador da sua originalidade e trabalho realizado.
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1 comentários:
excelente artigo, parabéns...
é uma homenagem mais que merecida!!!
Ricardo Vidal
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